(Fonte: The Atlantic)
OS EFEITOS DA PRIMAVERA ÁRABE E A DIFICULDADE EM SE LEGITIMAR UM GOVERNO DEMOCRÁTICO NO EGITO
Há exatos dois anos, o mundo inteiro acompanhou as manifestações populares ocorridas em países do Oriente Médio e norte da África, manifestações estas que buscavam maior democracia, participação popular e respeito a direitos humanos, sendo chamadas por muitos de “Primavera Árabe”.
Todos ficaram estupefatos ao ver o
vendedor ambulante de frutas e verduras Muhammad Bouazizi incendiar seu próprio
corpo em frente ao palácio do Governo Tunisino, por ter sua licença cassada e
se ver impossibilitado de exercer sua profissão. A partir desse momento,
Bouazizi tornou-se o símbolo da Primavera Árabe, levando grande parte da
população a queimar pneus e gritarem palavras de ordem, exigindo empregos e
liberdade. A Primavera Árabe mostrou ao restante do mundo que as populações de
países como Tunísia, Líbia e Egito também buscavam, da maneira que lhes foi
mais apropriada, algo que para os ocidentais é obviamente necessário para o
desenvolvimento de um Estado: a Democracia.
Após meses de protestos e
manifestações, em sua maioria facilitados pelo uso das redes sociais (vide SONU Acadêmico #2), além de repressão violenta por parte do Estado e milhares de
mortos de ambos os lados, a população egípcia conseguiu, em apenas 18 dias,
derrubar o Governo do Ditador Hosni Mubarak, que estava no poder há 30 anos. Tal
feito apenas foi alcançado com o apoio das Forças Armadas, que interferiram na
queda de Mubarak e, posteriormente, instauraram um governo de coalizão de
caráter temporário, com o intuito de preparar o estado egípcio para uma democracia.
Após novas manifestações na Praça
Tahrir contra um Governo militar que aparentemente não pretendia abandonar o
poder, foram realizadas eleições parlamentares, cujo resultado indicou a
maioria dos assentos para o partido islâmico “Irmandade Muçulmana”. Mesmo com
inúmeras suspeitas de compra de votos, Mohamed Morsi, representante da
Irmandade Muçulmana, assumiu o cargo de presidente egípcio, eleito
democraticamente pela população que, um ano antes, houvera insurgido pelo
direito ao sufrágio livre.
No entanto, o cenário da Primavera
Árabe no Egito - a Praça Tahrir -, continua, depois de quase dois anos, ocupada
por manifestantes descontentes com o novo governo pedindo a queda de um ditador.
O autocrata que o povo quer ver pelas costas, agora, é outro: Morsi está sendo
acusado pelos manifestantes de ter maculado os ideais dos levantes populares de
2011.
Os levantes surgiram após a
promulgação de um decreto presidencial de 22 de novembro de 2012 que, na
prática, garante ao presidente Morsi poderes acima do Poder Judiciário.
Milhares de manifestantes cristãos, muçulmanos seculares, liberais e
socialistas protestaram no centro do Cairo contra os “superpoderes”
autoconcedidos ao Poder Executivo. Mais
recentemente, a Assembleia Nacional Constituinte, dominada pelos islamistas,
ratificou os 230 artigos de uma Constituição que aproxima mais ainda o Estado
egípcio à religião Muçulmana, conferindo diversos poderes a Clérigos muçulmanos,
permitindo a censura, além de desrespeitar os direitos humanos, estes reconhecidos
internacionalmente.
Surge, então, um questionamento que
vai além dos fatos e adentra na esfera jurídico-política: até que ponto é
legítimo um poder democraticamente eleito, mas que não é envolvido de
fundamento jurídico? Será possível (e preferível) ter-se um Estado Democrático,
porém não de Direito?
Cabe, neste azo, relembrar um famoso
caso em que um presidente eleito democraticamente, por meio de um partido nacional-socialista,
modificou todo o ordenamento jurídico de um país, desconsiderando ideais de
direitos humanos e cooperação entre os povos, criminalizando populações pelo
simples fato de não serem da raça ariana. Estamos falando de Adolf Hitler,
presidente eleito pelo povo alemão em 1933, pelo Partido Nacional Socialista
dos Trabalhadores Alemães.
Comparativamente, em ambos os casos,
o chefe do Poder Executivo, eleito democraticamente, extrapola os limites
jurídicos e fere de morte a divisão e independência entre Poderes. Ao conferir
a si mesmo poderes que ultrapassam os limites do Poder Judiciário, o Presidente
acaba se tornando um ditador e o povo, que a princípio seria o detentor do
Poder Público, passa a ser vítima de atrocidades e desmandos.
O Estado de Direito impõe a seus
representados e representantes a obediência à lei, aos preceitos normativos,
seja no âmbito público seja no privado, sempre respeitando e seguindo os
preceitos estabelecidos em uma Constituição. Esse conceito surgiu quando do
Estado Liberal e da necessidade da burguesia de buscar proteger-se contra as
arbitrariedades da Nobreza Aristocrática da época. Já o Estado Democrático surgiu, no contexto do
Estado Social, para buscar legitimar o poder deste, promovendo não apenas uma
liberdade negativa (como no Estado de Direito, em que o cidadão se distanciava
do Estado), mas uma liberdade positiva, que representa o exercício democrático
do poder, que por fim o legitima.
Mais do que uma junção do Estado Liberal com o Estado Social, o Estado Democrático de Direito assume um papel inovador, buscando legitimar o Poder Estatal, ao mesmo tempo em que este deve ser regulado pela Constituição e por leis, pelo próprio Estado criadas, decorrentes, porém, da representação popular.
HABBERMAS (2003, p.68) já havia se expressado quanto à função inovadora do Estado Democrático de Direito:
Mais do que uma junção do Estado Liberal com o Estado Social, o Estado Democrático de Direito assume um papel inovador, buscando legitimar o Poder Estatal, ao mesmo tempo em que este deve ser regulado pela Constituição e por leis, pelo próprio Estado criadas, decorrentes, porém, da representação popular.
HABBERMAS (2003, p.68) já havia se expressado quanto à função inovadora do Estado Democrático de Direito:
É que o Direito
não somente exige aceitação; não apenas solicita dos seus endereçados
reconhecimento de fato, mas também pleiteia merecer reconhecimento. Para a
legitimação de um ordenamento estatal, constituído na forma da lei, requerem-
se, por isso, todas as fundamentações e construções públicas que resgatarão
esse pleito como digno de ser reconhecido.
De acordo com ZIMMERMANN (2002. p.
64-65), sob este aspecto, o Estado Democrático de direito é caracterizado por
uma sociedade política baseada numa Constituição escrita, que seja reflexo do
contrato social estabelecido entre todos os membros da coletividade; pelo
reconhecimento dos direitos fundamentais que devem ser tratados como
inalienáveis da pessoa humana; pela preocupação com o respeito aos direitos das
minorias; e pela igualdade de todos perante a lei.
Não se está, no entanto, respeitando
os limites no regime presidencial e democrático no Egito. O Presidente Muhhamed
Morsi assume diversos poderes absurdos, fazendo questão de posicionar-se acima
do Poder Judiciário, desconsiderando, dessa forma, anseios dos manifestantes da
Primavera Árabe, que ansiavam por escapar de políticos dotados de poderes
suficientes para, inclusive, desrespeitar direitos humanos reconhecidos
internacionalmente.
Por isso, esperamos que, a tempo,
não tenham sido em vão as manifestações e protestos presenciados durante a
Primavera Árabe e que as instituições políticas de países como o Egito não
sejam engolidas pela ganância ou por interesses individualistas e religiosos,
como da Irmandade Muçulmana, que pretende balizar a nova Constituição com um
teor religioso, a despeito do intento das minorias, como cristãos, socialistas,
liberais e muçulmanos seculares.
Ricardo Antônio Maia de Morais Júnior
Secretário de Finanças da SONU 2013
REFERÊNCIAS
HABERMAS,
J.; HÄBERLE, P. Sobre a legitimação pelos direitos humanos. In: MERLE, J.;
MOREIRA, L.(Org). Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003, p. 68.
ZIMMERMANN,
A. Curso de direito constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
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