23 de janeiro de 2013

SONU ACADÊMICO #8

Arctic Sea Ice (Fonte: Flickr, NASA Goddard Photo and Video's photostream)


O REGIME JURÍDICO DO ÁRTICO E A NECESSIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL[1]


Abarcando cada vez mais relevância na geopolítica internacional, a região ártica desponta como uma área de propensa exploração territorial e econômica. Juridicamente igualada ao status de mare liberum[2], a área é territorialmente regida pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM, daqui em diante), de 1982, que recentemente completou trinta anos de sua criação. O Círculo Polar Ártico (66º 33’N) inclui o Ártico (considerado como a parte coberta por gelo permanentemente), o Polo Norte (o ponto norte geográfico da terra) e o oceano Ártico[3].

Apesar de nenhum Estado ter adotado oficialmente uma teoria específica para extensão de sua jurisdição ao território ártico, pode-se destacar a teoria dos setores[4] como principal vertente doutrinária discutida e defendida, ao longo do século XX, para justificar os interesses de determinadas nações sobre a região.
 
Com a entrada em vigor da CNUDM, as questões que concernem o subsolo marítimo explorável passam a ser regulamentadas objetivamente pela Convenção. Nesta, é estabelecida a criação de uma comissão especial (Comissão sobre Limites da Plataforma Continental) para análise dos pedidos de extensão da plataforma continental. Diferentemente do que muitos doutrinadores afirmam, destacadamente Francisco Rezek[5] e Valério Mazzuoli[6], o interesse econômico-militar que esta região tem despertado é indiscutível. De acordo com estudos feitos pela US Geological Survey, cerca de vinte e cinco por cento das reservas mundiais de hidrocarbonetos estão localizadas na região ártica[7]. Este fato tem gerado solicitações, por parte de alguns Estados árticos – Rússia, Dinamarca e Noruega – de extensão dos limites da plataforma continental perante a Comissão sobre Limites da Plataforma Continental (CLPC, daqui em diante).

Os conflitos de interesses gerados pelas partes citadas vêm fazendo emergir uma série de questões que demandam soluções jurídicas, tais como a apuração da legitimidade dos pedidos de extensão da plataforma continental, a necessidade de proteção ambiental e social peculiar da região e a aplicação de um sistema normativo específico, ainda inexistente. O impasse levantado pela expressa necessidade de conservação da região, as lacunas decorrentes do tratamento vago dispensado ao gelo e ilhas e o interesse das nações que margeiam o Ártico, culminam em um panorama que demanda ações voltadas à solução do problema sob a égide de normas do Direito Internacional, destacadamente da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982.

O tratamento jurídico dispensado à região ártica sempre foi alvo de debates intensos na doutrina internacional. A região, por suas próprias características geoclimáticas, nunca havia sido alvo de disputas territoriais ou políticas, até o início do século XX. A dificuldade de navegação e a impossibilidade de povoamento satisfatório do Pólo Norte foram razões suficientes para manter a região longe dos interesses das grandes nações. De fato, por volta da década de 10 do século passado o Ártico era habitado somente por povos ancestrais autóctones da região, em sua maioria sociedades de caçadores Inuits.

O panorama de interesses sobre a região ártica começa a sofrer mudanças na metade da década de 1920. O fim da Primeira Guerra Mundial deixou marcas no continente europeu, longe de serem sanadas à época, mas também consolidou o nacionalismo e imperialismo concorrencial entre as nações. Os Estados Unidos da América saem da guerra como potência em ascensão.

O desenvolvimento tecnológico decorrente faz com que em 1926 seja realizado o primeiro vôo transantártico, abrindo assim as portas para a exploração da região. A chamada “febre ártica” perdurou de 1925 à idos de 1930, sendo caracterizada pelo aumento das expedições à região, com descoberta de várias ilhas, hasteamento de bandeiras nacionais e clamores de soberania sobre o Pólo Norte.[8]

O problema da definição do regime jurídico aplicável ao Ártico passou a ser, então, fonte de intensa discussão doutrinária. Os argumentos postos à mesa refletiam, inicialmente, os interesses nacionais de anexação do Ártico, dentro de um contexto em que a disputa por influência era decisiva para manutenção da hegemonia internacional.

Em 1907, em um discurso ao Parlamento canadense, o senador Poirier lançou os elementos fundamentais da teoria que dominaria a compreensão do Ártico por um longo período, a teoria dos setores. Nas palavras do próprio senador:

Um país cujas possessões se estendem até regiões árticas terá direito, ou deve ter direito, ou tem direito, a todas as terras que forem descobertas nas águas entre uma linha partindo de seu ponto oriental mais ao norte, e outra linha partindo de seu ponto ocidental mais ao norte. Todas as terras entre essas duas linhas até o Polo Norte devem pertencer ao país cujo território confina-as. [tradução livre] [9]

Com efeito, a visão explicitada pelo senador evidenciava a tentativa de legitimação do domínio dos países fronteiriços sobre o Ártico. A descrição da teoria nos mostra que a figura formada, semelhante a um triângulo, representaria o setor onde aquele país teria direito soberano a todas as ilhas e terras descobertas.

A despeito das discussões acadêmicas, nenhuma nação adotou oficialmente a teoria dos setores para efetivar seu controle sobre o Ártico. Isso se deve, em grande monta, ao contexto geopolítico mundial de tensão constante em decorrência da Guerra Fria. Com efeito, os dois maiores protagonistas desse período da história estavam separados justamente pela região ártica. Por se tratar de uma região evidentemente propensa a conflito, o interesse possessório pela área caiu durante o decorrer do século XX. Não se deve duvidar, porém, da forte presença militar, com o aumento das bases e frotas de submarinos e navios.

A conjunção de três fatores foi essencial para o reaparecimento do interesse pelo Ártico. A adoção da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, o desmantelamento da URSS e a descoberta de enormes reservas de combustíveis fósseis na região ártica reacenderam as antigas disputas geopolíticas

Com o advento da CNUDM, em 1982, a consistência da teoria dos setores tornou-se cada vez mais questionada. Hoje, o tratado consiste na fonte primária de todo o Direito que compreende o Ártico – apesar de, ironicamente, ela não fazer uma menção literal à região em nenhum de seus dispositivos. Assim sendo, o Ártico não dispõe, perante a Convenção, de uma disposição particular a respeito da legitimação da ocupação de suas ilhas, ficando a questão a cargo das normas internacionais de Direito Positivo e Direito costumeiro, da mesma forma que todas as outras regiões do globo. A própria particularidade principal da região, a presença de gelo que, majoritariamente, encontra-se presente ao longo de todo o ano, encontra provisão apenas no artigo 234, que se mostra aberto a compreensões múltiplas, carecendo de uma interpretação mais firme.

O problema principal atrelado ao sistema jurídico que se implementa na região é que, efetivamente, nunca se procurou dispensar uma visão ao Ártico que atrele à sua gestão o princípio do desenvolvimento sustentável, em suas três esferas de análise: econômica, social e ambiental. A região sempre foi vista como ecossistema essencial ao equilíbrio do planeta, necessitando de proteção especial, porém pouco é considerado acerca das necessidades específicas dos povos autóctones, muitos deles habitando o Ártico há milhares de anos.

Nesse sentido, foi criado em 1996, através da Declaração de Ottawa, o Conselho do Ártico, que possui o principal objetivo de unir esforços entre as nações árticas (Canadá, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia, Suécia e os Estados Unidos) e os povos autóctones da região para uma gerência adequada da região, ponderando a preservação do meio ambiente e os direitos dos povos[10].

Apesar dos avanços, muito ainda há que ser feito para que se alcance uma gestão adequada da região, pondo em prática as noções essenciais de desenvolvimento econômico atrelado às responsabilidades social e ambiental, em princípio ausentes na CNUDM. A nova corrida por combustíveis fósseis na região ártica, através do procedimento de extensão da plataforma continental da CNUDM, ameaça por em xeque avanços alcançados nas últimas décadas no sentido de uma visão sustentável do Ártico.

O direito dos povos da região vê-se patentemente ameaçado, uma vez que os grandes conglomerados internacionais iniciam suas atividades de transporte marítimo (possível com o derretimento das calotas polares) e de extração de hidrocarbonetos. A falta de um instrumento internacional que atrele a exploração econômica à preservação ambiental e ao desenvolvimento social é o principal óbice. Talvez seguir o exemplo do Tratado da Antártida, de 1959, seja um bom começo, porém é imprescindível que os Estados árticos tomem iniciativa neste sentido. É preciso que o regime jurídico aplicado ao Ártico reflita suas reais necessidades em face do princípio do desenvolvimento sustentável.


Rafael Diógenes Marques
José Carlos Marques Júnior
Diretores Acadêmicos do Arctic Council - SOI 2013 



[1] Texto adaptado de artigo publicado também pelos autores. MARQUES JÚNIOR, José Carlos; MARQUES, Rafael Diógenes. Disputas territoriais no Ártico à luz da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982. Revista de Geopolítica, v. 3, n. 2, jul. 2012. Disponível em: <http://www.revistageopolitica.com.br/ojs/ojs-2.2.3/index.php/rg/issue/view/10/showToc>. Acesso em: 12 dez. 2012.
[2]Por ser um oceano congelado, a região ártica possui o tratamento efetivo de alto-mar, sendo assim, goza do princípio da liberdade do mar. O advento de novas tecnologias de exploração e ocupação territorial põe em cheque, porém, a afirmação anterior, na medida em que o Ártico é cada vez mais cobiçado pelos Estados que o margeiam. ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. Do Nascimento e CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 642-644.
[3] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público - Volume 2. 13ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 1169.
[4] Inicialmente sugerida pelo senador canadense Pascal Poirier, em 1907, esta teoria tenta justificar a soberania perante o Ártico das nações que o margeiam. Será melhor analisada no ponto 2.1 deste artigo.
[5] REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 11ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 299.
[6] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de direito internacional público. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 683.
[7] KOPP, Dominique. Guerra fria sobre o Ártico. Biblioteca Diplô. Disponível em: <http://diplo.org.br/2007-09,a1897>. Acesso em: 12 dez. 2012.
[8] LAKHTINE, W.. Rights over the Arctic. 1928. 15 f. Artigo - The American Journal Of International Law, Moscou, 1928. Cap. 1. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/2190058>. Acesso em: 12 dez. 2012, p.703
[9] PHARAND, D. Canada’s Arctic Waters in international Law. Cambridge: University Press, 1988, p. 10.
[10] ARCTIC COUNCIL. About the Arctic Council. Disponível em: <http://www.arctic-council.org/index.php/en/about-us>. Acesso em: 12 dez. 2012.

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