Arctic Sea Ice (Fonte: Flickr, NASA Goddard Photo and Video's photostream)
O REGIME JURÍDICO DO ÁRTICO E A NECESSIDADE DE
IMPLEMENTAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL[1]
Abarcando cada vez mais relevância na geopolítica internacional, a região
ártica desponta como uma área de propensa exploração territorial e econômica.
Juridicamente igualada ao status de mare liberum[2], a área é
territorialmente regida pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar
(CNUDM, daqui em diante), de 1982, que recentemente completou trinta anos de
sua criação. O Círculo Polar Ártico (66º 33’N) inclui o Ártico (considerado
como a parte coberta por gelo permanentemente), o Polo Norte (o ponto norte
geográfico da terra) e o oceano Ártico[3].
Apesar de nenhum Estado ter adotado oficialmente
uma teoria específica para extensão de sua jurisdição ao território ártico,
pode-se destacar a teoria dos setores[4] como
principal vertente doutrinária discutida e defendida, ao longo do século XX,
para justificar os interesses de determinadas nações sobre a região.
Com a entrada em vigor da CNUDM, as questões que concernem o subsolo
marítimo explorável passam a ser regulamentadas objetivamente pela Convenção.
Nesta, é estabelecida a criação de uma comissão especial (Comissão sobre
Limites da Plataforma Continental) para análise dos pedidos de extensão da
plataforma continental. Diferentemente do que muitos doutrinadores afirmam,
destacadamente Francisco Rezek[5]
e Valério Mazzuoli[6], o interesse
econômico-militar que esta região tem despertado é indiscutível. De acordo com
estudos feitos pela US Geological Survey,
cerca de vinte e cinco por cento das reservas mundiais de hidrocarbonetos estão
localizadas na região ártica[7].
Este fato tem gerado solicitações, por parte de alguns Estados árticos –
Rússia, Dinamarca e Noruega – de extensão dos limites da plataforma continental
perante a Comissão sobre Limites da Plataforma Continental (CLPC, daqui em
diante).
Os conflitos de
interesses gerados pelas partes citadas vêm fazendo emergir uma série de
questões que demandam soluções jurídicas, tais como a apuração da legitimidade
dos pedidos de extensão da plataforma continental, a necessidade de proteção
ambiental e social peculiar da região e a aplicação de um sistema normativo
específico, ainda inexistente. O impasse levantado pela expressa necessidade de
conservação da região, as lacunas decorrentes do tratamento vago dispensado ao
gelo e ilhas e o interesse das nações que margeiam o Ártico, culminam em um
panorama que demanda ações voltadas à solução do problema sob a égide de normas
do Direito Internacional, destacadamente da Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito do Mar, de 1982.
O
tratamento jurídico dispensado à região ártica sempre foi alvo de debates
intensos na doutrina internacional. A região, por suas próprias características
geoclimáticas, nunca havia sido alvo de disputas territoriais ou políticas, até
o início do século XX. A dificuldade de navegação e a impossibilidade de
povoamento satisfatório do Pólo Norte foram razões suficientes para manter a
região longe dos interesses das grandes nações. De fato, por volta da década de
10 do século passado o Ártico era habitado somente por povos ancestrais
autóctones da região, em sua maioria sociedades de caçadores Inuits.
O
panorama de interesses sobre a região ártica começa a sofrer mudanças na metade
da década de 1920. O fim da Primeira Guerra Mundial deixou marcas no continente
europeu, longe de serem sanadas à época, mas também consolidou o nacionalismo e
imperialismo concorrencial entre as nações. Os Estados Unidos da América saem
da guerra como potência em ascensão.
O
desenvolvimento tecnológico decorrente faz com que em 1926 seja realizado o
primeiro vôo transantártico, abrindo assim as portas para a exploração da
região. A chamada “febre ártica” perdurou de 1925 à idos de 1930, sendo
caracterizada pelo aumento das expedições à região, com descoberta de várias
ilhas, hasteamento de bandeiras nacionais e clamores de soberania sobre o Pólo Norte.[8]
O problema da
definição do regime jurídico aplicável ao Ártico passou a ser, então, fonte de
intensa discussão doutrinária. Os argumentos postos à mesa refletiam,
inicialmente, os interesses nacionais de anexação do Ártico, dentro de um
contexto em que a disputa por influência era decisiva para manutenção da
hegemonia internacional.
Em 1907, em um
discurso ao Parlamento canadense, o senador Poirier lançou os elementos
fundamentais da teoria que dominaria a compreensão do Ártico por um longo
período, a teoria dos setores. Nas palavras do próprio senador:
Um país cujas possessões se
estendem até regiões árticas terá direito, ou deve ter direito, ou tem direito,
a todas as terras que forem descobertas nas águas entre uma linha partindo de
seu ponto oriental mais ao norte, e outra linha partindo de seu ponto ocidental
mais ao norte. Todas as terras entre essas duas linhas até o Polo Norte devem
pertencer ao país cujo território confina-as. [tradução livre] [9]
Com efeito, a
visão explicitada pelo senador evidenciava a tentativa de legitimação do
domínio dos países fronteiriços sobre o Ártico. A descrição da teoria nos
mostra que a figura formada, semelhante a um triângulo, representaria o setor
onde aquele país teria direito soberano a todas as ilhas e terras descobertas.
A
despeito das discussões acadêmicas, nenhuma nação adotou oficialmente a teoria
dos setores para efetivar seu controle sobre o Ártico. Isso se deve, em grande
monta, ao contexto geopolítico mundial de tensão constante em decorrência da
Guerra Fria. Com efeito, os dois maiores protagonistas desse período da
história estavam separados justamente pela região ártica. Por se tratar de uma
região evidentemente propensa a conflito, o interesse possessório pela área
caiu durante o decorrer do século XX. Não se deve duvidar, porém, da forte
presença militar, com o aumento das bases e frotas de submarinos e navios.
A
conjunção de três fatores foi essencial para o reaparecimento do interesse pelo
Ártico. A adoção da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de
1982, o desmantelamento da URSS e a descoberta de enormes reservas de combustíveis
fósseis na região ártica reacenderam as antigas disputas geopolíticas
Com
o advento da CNUDM, em 1982, a consistência da teoria dos setores tornou-se
cada vez mais questionada. Hoje, o tratado consiste na fonte primária de todo o
Direito que compreende o Ártico – apesar de, ironicamente, ela não fazer uma
menção literal à região em nenhum de seus dispositivos. Assim sendo, o Ártico
não dispõe, perante a Convenção, de uma disposição particular a respeito da
legitimação da ocupação de suas ilhas, ficando a questão a cargo das normas
internacionais de Direito Positivo e Direito costumeiro, da mesma forma que
todas as outras regiões do globo. A própria particularidade principal da
região, a presença de gelo que, majoritariamente, encontra-se presente ao longo
de todo o ano, encontra provisão apenas no artigo 234, que se mostra aberto a compreensões
múltiplas, carecendo de uma interpretação mais firme.
O
problema principal atrelado ao sistema jurídico que se implementa na região é
que, efetivamente, nunca se procurou dispensar uma visão ao Ártico que atrele à
sua gestão o princípio do desenvolvimento sustentável, em suas três esferas de
análise: econômica, social e ambiental. A região sempre foi vista como
ecossistema essencial ao equilíbrio do planeta, necessitando de proteção especial,
porém pouco é considerado acerca das necessidades específicas dos povos
autóctones, muitos deles habitando o Ártico há milhares de anos.
Nesse sentido,
foi criado em 1996, através da Declaração de Ottawa, o Conselho do Ártico, que
possui o principal objetivo de unir esforços entre as nações árticas (Canadá,
Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia, Suécia e os Estados Unidos) e
os povos autóctones da região para uma gerência adequada da região, ponderando
a preservação do meio ambiente e os direitos dos povos[10].
Apesar dos
avanços, muito ainda há que ser feito para que se alcance uma gestão adequada
da região, pondo em prática as noções essenciais de desenvolvimento econômico
atrelado às responsabilidades social e ambiental, em princípio ausentes na
CNUDM. A nova corrida por combustíveis fósseis na região ártica, através do
procedimento de extensão da plataforma continental da CNUDM, ameaça por em
xeque avanços alcançados nas últimas décadas no sentido de uma visão
sustentável do Ártico.
O direito dos
povos da região vê-se patentemente ameaçado, uma vez que os grandes
conglomerados internacionais iniciam suas atividades de transporte marítimo
(possível com o derretimento das calotas polares) e de extração de
hidrocarbonetos. A falta de um instrumento internacional que atrele a
exploração econômica à preservação ambiental e ao desenvolvimento social é o
principal óbice. Talvez seguir o exemplo do Tratado da Antártida, de 1959, seja
um bom começo, porém é imprescindível que os Estados árticos tomem iniciativa
neste sentido. É preciso que o regime jurídico aplicado ao Ártico reflita suas
reais necessidades em face do princípio do desenvolvimento sustentável.
Rafael Diógenes Marques
José Carlos Marques Júnior
Diretores Acadêmicos do Arctic Council - SOI 2013
[1] Texto adaptado de artigo publicado também pelos autores. MARQUES JÚNIOR,
José Carlos; MARQUES, Rafael Diógenes. Disputas territoriais no Ártico à luz da
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982. Revista de Geopolítica, v. 3, n. 2,
jul. 2012. Disponível em:
<http://www.revistageopolitica.com.br/ojs/ojs-2.2.3/index.php/rg/issue/view/10/showToc>.
Acesso em: 12 dez. 2012.
[2]Por ser um oceano congelado, a
região ártica possui o tratamento efetivo de alto-mar, sendo assim, goza do
princípio da liberdade do mar. O advento de novas tecnologias de exploração e
ocupação territorial põe em cheque, porém, a afirmação anterior, na medida em
que o Ártico é cada vez mais cobiçado pelos Estados que o margeiam. ACCIOLY,
Hildebrando; SILVA, G. E. Do Nascimento e CASELLA, Paulo Borba. Manual de
Direito Internacional Público. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.
642-644.
[3] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público
- Volume 2. 13ª ed. rev. e aum. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001, p. 1169.
[4] Inicialmente sugerida pelo senador canadense
Pascal Poirier, em 1907, esta teoria tenta justificar a soberania perante o
Ártico das nações que o margeiam. Será melhor analisada no ponto 2.1 deste
artigo.
[5] REZEK, Francisco. Direito
Internacional Público: curso elementar. 11ª ed. rev. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2008, p. 299.
[6] MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso
de direito internacional público. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p. 683.
[7] KOPP, Dominique. Guerra fria sobre o
Ártico. Biblioteca Diplô. Disponível em:
<http://diplo.org.br/2007-09,a1897>. Acesso em: 12
dez. 2012.
[8] LAKHTINE, W.. Rights over the Arctic. 1928. 15 f. Artigo - The American Journal Of
International Law, Moscou, 1928. Cap. 1. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/2190058>. Acesso em: 12 dez. 2012, p.703
[9] PHARAND, D. Canada’s Arctic Waters in international Law. Cambridge: University
Press, 1988, p. 10.
[10] ARCTIC COUNCIL. About the Arctic Council. Disponível em:
<http://www.arctic-council.org/index.php/en/about-us>. Acesso em: 12 dez.
2012.
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