19 de abril de 2013

SONU ACADÊMICO #13

Família de Vladimir Herzog recebe novo atestado de óbito do jornalista  
(Fonte: SUL21/Foto: Marcelo Camargo/ABr)


A LEI DA ANISTIA E O CASO DE VLADIMIR HERZOG


Vladimir Herzog nasceu em 27 de junho de 1937, em Osijek, na Iugoslávia, atual Croácia. Naturalizou-se brasileiro, depois que seus pais vieram para o Brasil, fugindo do domínio da Alemanha Nazista sobre seu país. Formou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo e atuou como professor, jornalista e dramaturgo. Mais tarde, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, buscando o fim da ditadura militar no Brasil, iniciada em 1964.

Responsável pela edição do telejornal “Hora da Notícia”, da TV Cultura, o jornalista Vladimir Herzog fora procurado na noite do dia 24 de outubro de 1975, na própria sede da emissora, por dois agentes do Destacamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército, doravante DOI-CODI.

Na manhã do dia 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog apresenta-se no DOI-CODI São Paulo. Ao final desse mesmo dia, acrescenta-se à história política brasileira uma das mais controversas mortes, dentre tantas ocorridas durante a Ditadura Militar. A vida de Vladimir Herzog, jornalista atuante e respeitado, fora usurpada pela necessidade premente do II Exército de São Paulo de impor seus desvirtuados padrões de inquérito.

O interrogatório de Herzog, iniciado em 25 de outubro de 1975, culminou com o suposto suicídio do interrogado. Motivado pela constatação da participação e da articulação de Herzog em grupos de esquerda, qualificados como contrários aos interesses da nação, o regime militar adiciona mais um nome à lista de suicídios ocorridos durante o período de sua atuação.

Após a divulgação oficial, feita pelo Comando do II Exército, da morte de Vlado, ocorrida nas dependências do DOI-CODI, com a posterior divulgação do laudo médico constatando o suicídio, surge uma forte inquietação da opinião pública.

O ambiente de insegurança a que estavam expostos fez com que a comunidade jornalística entendesse que chegara o momento de dar um basta e sobrepor-se às ameaças daqueles que os ameaçavam desde o início do novo regime. Em resposta, o Governo passa a articular formas de impor sua autoridade sem, entretanto, transparecer seu recrudescimento. Assim, aumenta a fiscalização sobre os jornais e passa a denegrir a imagem de Vladimir, difamando a TV Cultura pela propagação de material comunista, produzido pelo falecido diretor.

Em 1976, a viúva e os filhos de Herzog propuseram uma Ação Declaratória, na Justiça Federal de São Paulo, pleiteando que a União fosse responsabilizada pela prisão arbitrária, tortura e morte do jornalista. Clarice Herzog não aceitava o laudo emitido junto à certidão de óbito do marido, pois todos os meios de prova arrolados eram suficientes para garantir que Vladimir fora torturado e morto durante as sessões de interrogatório no DOI-CODI. Em momento pretérito à Ação Declaratória, o Exército inicia uma Investigação Policial Militar (IPM no 1.173/75) para apurar as circunstâncias do suicídio, cujo inquérito, concluído pelo General Cerqueira Lima afirma que:

[...] em face das investigações procedidas pode-se afirmar que a morte de Vladimir Herzog se verificou por voluntário suicídio, por enforcamento, embora a razão íntima não se possa afirmar qual tenha sido; (...) não havendo, destarte, sido apurado qualquer crime previsto no código Penal Militar, nem transgressão disciplinar prevista nos Regulamentos Militares. Assim, sejam os presentes autos remetidos ao Excelentíssimo Senhor General Comandante do II Exército.[1]

O arquivamento do IPM ocorreu em janeiro de 1976, quando o Procurador Geral da Justiça Militar determinou tal ato. Em 27 de outubro de 1978, a sentença da Ação Declaratória fora proferida julgando a União responsável pela prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog. Ademais, considerou imprestável o laudo médico-legal até então vigente.

Em 28 de agosto de 1979, menos de um ano após a sentença favorável na seara cível, é promulgada a Lei nº 6683, mais conhecida como Lei de Anistia, cujo Artigo 1º esclarece que:

É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.[2]

O § 1º desse mesmo artigo esclarece: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”[3].

Considerada por muitos uma espécie de artimanha jurídica, esse último dispositivo tem nítida intenção de abranger, no campo da anistia criminal, os agentes do governo que ordenaram ou praticaram crimes comuns contra os dissidentes políticos, à época do regime militar de 1964.

A Lei de Anistia engloba crimes políticos ou conexos com esses, entretanto é de fácil compreensão que os crimes cometidos contra Herzog e contra tantas outras vítimas da repressão militar não se caracterizam como crimes políticos, mas como crimes comuns, já que não atentaram contra a ordem política e a segurança nacional, mas contra a vida daqueles que supostamente colocavam em risco a segurança do Estado.

Com a ajuda da Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei 12.528/2011, cuja finalidade é apurar graves desrespeitos aos Direitos Humanos, ocorridos entre os anos de 1946 e 1988[4], a família Herzog obteve uma grande conquista. Em 24 de setembro de 2012, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que a certidão de óbito de Herzog fosse retificada, para que nela constassem, como causas de sua morte, as lesões e os maus tratos sofridos nas dependências do DOI-CODI. Assim sendo, em 15 de março de 2013, foi celebrada uma cerimônia em homenagem a Vladimir Herzog, na qual a sua família recebeu o novo assento de óbito, com as devidas alterações[5].

Aqui, tem-se caracterizados dois contrapontos. Um deles, a Lei de Anistia, que extingue a responsabilização de atos passíveis de punição, cometidos durante o regime ditatorial brasileiro, entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, tanto para perseguidos quanto para perseguidores. Portanto, trágica é a constatação de que autores de crimes repugnados nacional e internacionalmente, como a tortura, não serão responsabilizados penalmente por seus atos criminosos. Reforçando o entendimento trazido pela Lei de Anistia, recentemente o STF reconheceu a constitucionalidade e a legitimidade dessa lei, reafirmando a impossibilidade de apuração, na esfera criminal, dos fatos ocorridos[6].

De outro lado, há a omissão, por parte do Governo brasileiro, de investigar e o julgar os responsáveis pela tortura e morte de Vladimir Herzog, mesmo depois de reconhecida a prática desses crimes, em seu novo atestado de óbito. O Governo, então, admite a prática dos crimes, mas não se dispõe a investigá-los. Ao contrário, omite-se de seus deveres de apurar os fatos e responsabilizar os autores.

A interpretação da norma, segundo a qual se concede anistia aos agentes públicos responsáveis por homicídios, desaparecimentos forçados, lesões corporais, abusos sexuais e outras violências, contraria preceitos constitucionais fundamentais, dentre os quais podem ser citados: a isonomia em matéria de segurança, a não ocultação da verdade por parte do poder público, o princípio democrático, o princípio republicano e o princípio da dignidade da pessoa humana.

A nova certidão de óbito de Herzog demonstra a desfaçatez do governo federal, que busca encobrir o absurdo político-jurídico-humanitário da lei da anistia. Outorgam-se, dessa forma, a amnésia, defere-se a falta de dignidade e impede-se, em todos os campos, a execução da justiça.

A permanência do entendimento de adequação da anistia à Constituição Brasileira simboliza a reduzida disposição democrática em combater as classes outrora detentoras do poder. A sustentação do não enfretamento, em questões fundamentais, ameaçam as bases da democracia.

Ademais, conforme estabelecido pela Organização das Nações Unidas, considera-se crime contra a humanidade qualquer “ato desumano cometido contra a população civil, no bojo de uma perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos"[7]. Portanto, contrariamente ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, a ONU reconhece que os crimes praticados por agentes estatais, no período da ditadura militar brasileira, ainda devem ser investigados pelo Ministério Público brasileiro e submetidos ao Poder Judiciário, pois, caracterizados como crimes de lesa-humanidade, não são passíveis de prescrição ou anistiamento. Sendo assim, o entendimento do STF contraria as obrigações que o Brasil assumiu perante a comunidade internacional.

Para maiores informações sobre o tema:



Caso A: Comunidades Indígenas de Belo Monte e Outros versus República Federativa do Brasil.
Caso B: Vladimir Herzog e Outros versus República Federativa do Brasil.
Jordana Costa Marinho
Matheus Pereira Novais Correia
Diretores da Corte Interamericana de Direitos Humanos - SONU 2013[8]



[1] JORDÃO, Fernando Pacheco. Dossiê Herzog, Prisão, Tortura e Morte no Brasil. São Paulo: Editora Global, 1979.
[2] BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm> Acesso em 18 abr. 2013.
[3] Idem. op. cit.
[4] Comissão Nacional da Verdade. Disponível em <http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acesso-informacao/a-cnv> Acesso em 19 mar. 2013.
[5] ALBUQUERQUE, Flávia. Família de Herzog recebe nova certidão de óbito. Agência Brasil - Empresa Brasil de Comunicação. Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-03-15/familia-de-herzog-recebe-nova-certidao-de-obito> Acesso em 19 mar. 2013.
[6] BORGES, Danilo Marques. A lei de anistia e a comissão da verdade. Âmbito Jurídico. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8725> Acesso em 19 mar. 2013.
[7] Ministério Público Federal. Crimes contra a humanidade cometidos no Brasil durante o regime militar (1964 a 1985). Dever estatal de apurar os fatos e responsabilizar os autores. Disponível em <http://www.prsp.mpf.gov.br/prdc/area-de-atuacao/direitos-humanos/ditadura/Representacao%20-%20Homicidio%20-%20Vladimir%20Herzog.pdf> Acesso em 15 abr. 2013.
[8] A Corte Interamericana de Direitos Humanos será um dos comitês simulados na SONU 2013, dedicado aos estudantes de Ensino Superior. Durante os quatro dias de simulação, os participantes analisarão os seguintes casos: Comunidades Indígenas de Belo Monte e Outros versus República Federativa do Brasil; Vladimir Herzog e Outros versus República Federativa do Brasil.
ALMEIDA FILHO, Hamilton. A sangue-quente, a morte de Vladimir Herzog. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1978.
ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1985.
 
 




  

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