Manifestantes em Seul, na Coreia do Sul, durante protesto contra o terceiro teste nuclear da Coreia do Norte
(Fonte: Valor Econômico)
(Fonte: Valor Econômico)
O surgimento de uma nova ordem mundial, simbolizada pela queda do muro de Berlim
e o fim da Guerra Fria em 1989, apresenta novas perspectivas para compreender o sistema internacional vigente e suscitar uma reflexão sobre a construção e constituição deste mesmo sistema. No entanto, a prevalência do sistema
capitalista em detrimento do comunista não representou, totalmente, o fim de uma dinâmica bipolar no sistema internacional. Os resquícios da Guerra Fria representados atualmente pela conflitualidade entre as Coreias do Norte e do Sul indicam que ainda há uma – dentre as várias áreas do globo – capaz de desestabilizar a segurança internacional.
Apesar da dimensão da conflitualidade entre os dois Estados ser “aparentemente” menor
– quando comparada às rivalidades entre os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) na época – o importante neste argumento é identificar os principais elementos que possibilitam caracterizar o conflito coreano como um conflito à imagem da Guerra Fria.
O primeiro argumento encontra-se estruturado na condição heterogênea entre os
dois sistemas políticos, como salienta Halliday[1], em decorrência de seus estudos sobre a teoria intersistêmica. Nesta perspectiva, Halliday[2] apresenta o conflito intersistêmico como um conflito interestatal e intersocietal, “no qual as formas de rivalidades convencionais – militar, política e econômica – são compostas e também legitimadas por uma total divergência de normas políticas e sociais”.
Desta maneira, as formas convencionais de competição, incluindo a guerra, podem
desempenhar um papel. Mas a competição de valores é igualmente importante, e pode, repetidas vezes, ser a principal dimensão em que um lado do conflito prevalece sobre o outro[3].
Com base nesta prerrogativa, tem-se o exemplo a partir da dinâmica do conflito
coreano. Após o fim da Guerra da Coreia (1950 – 1953), as Coreias do Norte e do Sul se constituíram como os únicos países do mundo divididos pelo Paralelo 38 N, composto por uma zona desmilitarizada (DMZ) cuja largura é de 4 km para uma extensão de 250 km. De lado a lado,um milhão de soldados vigiam ininterruptamente a fronteira no quadro da prevenção de incidentes que poderiam colocar em risco não só a região do Nordeste Asiático como também a
estabilidade mundial[4].
Esta condição de vigilância pode ser incluída como o segundo argumento para entender
a dinâmica da Guerra Fria no contexto das Coreias. De acordo com Oliveira[5], no período imediato ao fim da Guerra Fria, tornou-se lugar comum apontar que, com o desaparecimento da União Soviética ou do sistema bipolar, o mundo entraria num período contínuo de paz. Havia a perspectiva de que os investimentos em armas seriam redirecionados para os projetos de desenvolvimento e que sob os ideais do liberalismo, conjugando democracia e
desenvolvimento, as forças econômicas funcionariam na promoção da interdependência e cooperação entre os Estados. Apontava-se, assim, para uma predominância do econômico sobre o ideológico, do econômico sobre o militar ou mesmo do geoeconômico sobre o geoestratégico.
Apesar desta perspectiva relacionada com o fim da Guerra Fria e o início de um processo de paz contínuo, as relações entre Coreia do Norte e Coreia do Sul evidenciaram que esta lógica estaria errada. De fato, o sistema internacional não obteve uma paz contínua com o fim da Guerra Fria, mas, sim, uma alteração quanto ao conflito intersistêmico. O que antes era consequência de uma conflitualidade entre Estados Unidos e União Soviética, passou a ser resultado da instabilidade entre Coreia do Norte e Coreia do Sul.
Além disso, os dois sistemas políticos apresentam ideologias divergentes, como à
época das hostilidades decorrentes do capitalismo e do comunismo na Guerra Fria, evidenciando o terceiro argumento.
A Coreia do Norte, embora seja oficialmente denominada de República Popular
Democrática da Coreia, é o país mais fechado do mundo, marcado pelo sistema ditatorial hereditário, consolidando 65 anos de poder político: iniciado em 1948 por Kim Il-Sung, posteriormente assumido por seu filho Kim Jong-il, em
1994 e, em 2011, pelo seu neto Kim Jong-un. Em contrapartida, a Coreia do Sul, oficialmente República da Coreia, possui um sistema político democrático.
Porém, não bastam as diferenças políticas entre os dois países para identificar
semelhanças com o período da Guerra Fria. O processo histórico e as relações bilaterais mantidas com a União Soviética e os Estados Unidos – quarto argumento – apontam para a continuação de uma política militar de defesa tanto
na Coreia do Norte quanto na Coreia do Sul, respectivamente.
Desde a II Guerra Mundial e, principalmente, após o fim da Guerra da Coreia (1950 -
1953), a União Soviética continuou a influenciar a Coreia do Norte em seu programa nuclear. Embora o país tenha assinado, na década de 1980, o tratado de não proliferação nuclear, o seu cumprimento não foi efetivado. E, a partir de 2009, a Coreia do Norte tem deixado o mundo em estado de alerta após vários testes com mísseis nucleares. No caso da Coreia do Sul, a região tem se tornado uma zona de influência americana, recebendo apoio dos EUA desde a Guerra da Coreia.
Além destes dois aspectos – sistemas políticos divergentes e influência militar dos
Estados Unidos e União Soviética – a península Coreana representa outra diversidade de questões. O quinto argumento é reforçado com Oliveira[6], ao elucidar que o conflito coreano é, de um lado, resultado de uma inimizade histórica tanto com a China quanto com o Japão e, de outro, sua divisão em dois Estados, dentro da lógica da Guerra Fria e a permanência de um conflito ainda com características políticas e ideológicas.
Em sua análise, Oliveira[7] ressalta que a Península Coreana atrai igualmente
as atenções internacionais, num entendimento que o status quo ali reinante ou os processos de mudanças terão reflexos imediatos, nos âmbitos regionais e internacionais. De qualquer forma, uma série de fatores indica que a
Península Coreana está passando por um período de mudanças dinâmicas. Entre as principais mudanças apontadas por Oliveira[8] destacam-se:
a) alteração na orientação estratégica de uma acomodação continental com a China;
b) uma fundamental reestruturação da presença das forças norte-americanas na península; c) uma nova balança estratégica regional talhada por uma Coréia do Norte nuclearizada e pela crescente fragilidade do regime em Pyongyang,
desesperado por uma reforma econômica.
Esse dinamismo apontado por Oliveira[9] pode ser justificado com base no que refere Halliday[10] sobre a heterogeneidade do conflito intersistêmico, baseada na lógica de que os Estados com políticas e sociedades divergentes estariam focados em defender seus interesses à medida que pretendiam dominar o mundo para abolir o sistema alternativo. Neste caso, qual sistema é considerado alternativo? O sistema político sul-coreano ou o norte-coreano? Responder a esta pergunta induz a outro debate: qual a perspectiva que um sistema político tem do outro? Ambos – norte-coreano e sul-coreano – podem ter em seu opositor um sistema alternativo que deve ser combatido. Eis uma razão essencial para o prolongamento do conflito entre os dois países.
É nesta lógica que Adler[11] vai abordar a construção da realidade social ou,
mais precisamente, do sistema internacional como o conhecemos atualmente. Os diferentes processos de interação entre os Estados condiciona o sistema internacional a um dinamismo conflituoso. Em sua perspectiva, o modo como o mundo material forma a ação e interação humanas – e também é formado por ela – depende de interpretações normativas.
Assim, o que hoje pode ser considerado como realidade social foi, de fato, construído.
E não há razão para que essa construção social esteja concluída em sua totalidade. Trata-se, portanto, de um processo em que a realidade social assume um caráter dinâmico a partir de interações entre seres humanos e natureza. Da mesma forma dá-se com a relação entre os Estados.
É o que esclarece Hoffman[12], ao defender a ideia de que o mundo ficou muito
mais complexo. Em substituição à rigidez do esquema bipolar, adentrou-se num sistema com um aumento significativo no
número de Estados independentes e que estão agora engajados numa intensa competição por poder econômico e financeiro. Isto significa que a insegurança internacional está se ampliando pelo número de participantes e de variáveis em
jogo.
Importante nesta contribuição de Hoffman[13] é o dinamismo dos conflitos. No caso do conflito entre Coreia do Norte e Coreia do Sul, uma principal questão está relacionada com os interesses militares, políticos e econômicos decorrentes do prolongamento do conflito entre esses dois países. Além disso, é importante perceber que as ameaças oriundas do governo norte-coreano eram, inicialmente, direcionadas à Coreia do Sul e, agora, têm como principal alvo os Estados Unidos. Essa mudança enfatiza ainda mais a conflitualidade de sistemas políticos divergentes: de um lado, uma ditadura; do outro, o poder liberal.
É por esta razão que uma guerra entre Coreia do Norte e Coreia do Sul torna-se
iminente. No entanto, caso uma guerra seja iniciada, será a Coreia do Sul a responsável por promover a sua própria defesa? Certamente não. A condição desempenhada pelos Estados Unidos diante do conflito entre as duas Coreias representa – mais uma vez – o posicionamento deste país diante de um sistema político divergente.
Como salienta Cox[14], em “Radical Theory and the new Cold War”, a Guerra
Fria é um sistema altamente funcional pelo qual as superpotências controlam seus próprios domínios e, devido a isso,
ela continua e irá continuar. Assim, a dinâmica da Guerra Fria tende a diversificar atores, tornando o conflito coreano cada vez mais peculiar.
Prof. Ms. José Maurício Vieira Filho
Professor de Relações Internacionais da Faculdade Stella Maris
[4] MARTINS, Marco Antonio. As duas Coreias: zona crítica de tensão internacional. In: Anuário JANUS. Zonas de crise na geopolítica mundial, 2011, v. 02. Disponível em <http://janusonline.pt/popups2011_2012/2011_2012_2_13.pdf>
[5] OLIVEIRA, Henrique Altemani de. A Segurança Regional e o Desenvolvimento Nuclear na Coréia do Norte. In: MERA, Carolina. (Org.). Estudios Coreanos en América Latina. Buenos Aires: Ediciones Al Margen, 2004, v. 1, p. 375-398. Disponível em <http://www.pucsp.br/geap/coordenador/aseguran.PDF>
[6] Idem. op. cit.
[7] ______. A Península Coreana: proposições para mudanças. In: BONILLA, Juan José Ramírez. (Org.). Transiciones Coreanas: permanencia y cambio en Corea del Sur en el inicio del siglo XXI. 1a.ed.México, DF: El Colegio de México, 2009, p. 237-259. Disponível em <http://ceaa.colmex.mx/estudioscoreanos/images/altamani.pdf>
[8] Idem. op. cit.
[9] Idem. op. cit.
[10] HALLIDAY, Fred. op. cit.
[11] ADLER, Emanuel. O Construtivismo no Estudo das Relações Internacionais. Lua Nova, 1999, v. 47, p. 201-252. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ln/n47/a11n47.pdf>
[12] HOFFMAN, Stanley. Delusions of World Order. The New York Review of Books, 39(7), 1992, p. 37-43.
[13] Idem. op. cit.
[14] COX, Michael. Radical Theory and the new Cold War. In: BOWKER, Mike e BROWN, Robin. From Cold War to Collapse: Theory and World Politics in the 1980s. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
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